AÇÚCAR: Cópia e inspiração - Territórios Gastronômicos

AÇÚCAR: Cópia e inspiração

Por Mariana Correa

Na semana passada um tema de extrema relevância surgiu nas redes sociais de confeitaria. Quando entramos no ramo da gastronomia, principalmente confeitaria, talvez o que mais ouvimos falar é sobre “cópias”, algo que chega a criar discussões acaloradas. Minha ideia nesse post é mais sobre fazer questionamentos do que dar repostas. Acho que é um tema extremamente relevante e demanda reflexão.

Que fique claro que falamos aqui de receitas, e não cópia de identidade/marca, ou uso de fotos alheias para vender seu produto etc, o que já são problemas bem diferentes e com questões legais. Quero trazer a reflexão: Existe diferença entre inspiração e cópia? Existe cópia? Se pegamos uma receita clássica e a reproduzimos, ou ainda, começamos a comercializar, é cópia? Depende da receita? São questões que qualquer pessoa do meio já se fez ou já passou em algum momento.

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Vejamos uma receita de quindim. Reproduzi-la e comercializá-la provavelmente não vai levantar questionamentos. O mesmo se uma pessoa abrir uma loja só de macarons, ou de brigadeiros, bem-casados, brownies etc. Essas receitas foram criadas em algum momento, por alguém. Se faço uma tarte tatin no meu atelier, não faço referência às irmãs Tatin da França, e ninguém questiona isso. Será porque é uma receita considerada clássica? E a questão estaria nas novas criações? Existem novas criações? É de se pensar…

Algumas pessoas questionam a cópia estética de um bolo ou torta, por exemplo, mesmo que a receita não seja a mesma. Seria a cópia do visual o problema, então? Mas e quanto à reprodução de uma receita? Até onde vai o limite?

Há os que consideram que mudar um ingrediente numa receita já a faz diferente da original de onde tiraram. Ou que a “mão” de cada um acaba dando resultados diferentes, então não existiria cópia. Não concordo inteiramente, pois a receita, a meu ver, é muito mais a estrutura de que é feita, proporções, conceito etc, que simplesmente a escolha dos ingredientes (que também fazem parte). Acho que a menção ao autor que te inspirou (se esse for o caso, pois coincidências acontecem muito nesse meio também) é sempre de bom tom, uma questão de respeito ao colega de profissão.

Por outro lado, trabalhando no meio também como professora, tive que aprender a ser mais leve com essas questões. Minhas receitas (que são também uma mistura de influências de memórias e experiências próprias, estudos da faculdade ou de chefs que admiro) serão reproduzidas assim que a aula acabar. E eu tenho que estar ok sobre isso, ou enlouqueceria, e realmente está tudo bem! Ver os resultados dos alunos é incrível e recompensador! E eu vou para o próximo passo, vou criar coisas novas, montar aulas novas, me força a inovar e continuar estudando.

Hoje vejo a “cópia” como parte do processo evolutivo de criação. A verdade é que todos começamos copiando alguém! Seja uma receita da avó ou da mãe, e, depois, de profissionais que admiramos. Nessa fase, cópia e inspiração se misturam e isso faz parte do processo criativo, a meu ver. Tentamos reproduzir o que admiramos, até para saber se somos capazes de fazer algo igual. É a fase das inseguranças, do “será que eu consigo fazer isso?”, e você copia, tenta reproduzir exatamente aquilo que te fascina.

Com o tempo, o normal é perder essas “muletas”, que devem ir abrindo espaço para o processo criativo, que é exatamente isso, um processo. Não é dom. Criatividade, para mim, é um esforço diário, você constrói, busca, tenta, conhece, experimenta, estuda, testa diariamente. E isso acaba fazendo parte do seu dia a dia profissional. No entanto, as influências não cessam, ainda mais em um mundo como o de hoje, em que a informação está a um clique de distância, e sabemos que ninguém mais inventa a roda.

Me peguei pensando mais sobre o assunto e me lembrei do estudo que meu pai fez sobre a “História das construções”. Anos de pesquisa que se transformaram em quatro volumes de livros incríveis falando das construções/arquitetura/engenharia das várias civilizações que já andaram pelo mundo. O ponto central da pesquisa é exatamente como a mente humana encontra soluções semelhantes, se não idênticas, para os problemas de engenharia, mesmo dentre civilizações que nunca se encontraram. Seja pela distância geográfica, ou pela linha do tempo.

Ele demonstrou que, mesmo separadas por milhares de quilômetros ou por séculos, sem troca de informações ou relacionamento de nenhuma forma, algumas civilizações humanas se depararam com os mesmos problemas de engenharia em algum momento, e as soluções foram as mesmas. Mas o que isso tem a ver com confeitaria?

Eu acho que muito (aliás, acho que a confeitaria conversa diretamente com várias outras áreas de conhecimento, mas isso é assunto para outro post)! Me faz pensar como a mente humana, por mais engenhosa e criativa que possa ser, segue alguns parâmetros. Numa época em que comunicação nem sequer era possível, “cópias” aconteceram. Hoje, em um mundo totalmente conectado, é praticamente impossível, mesmo que inconscientemente, não ser influenciado em nossas ideias.

Essa perspectiva acabou me dando outra visão no meu trabalho no atelier também. Percebi que quanto menos eu foco no trabalho alheio, ou o que estão fazendo, mais eu trabalho feliz, e mais minha criatividade flui. Sei quais são meu conceito e identidade na confeitaria, sei aonde quero chegar, o que gosto de fazer. E trabalho tentando evoluir sempre, eu com meu eu anterior. Progredir o meu trabalho com o que fazia tempos atrás.

Quando desviamos nosso foco para preocupações como “alguém está me copiando”, ou se “fizeram minha receita”, etc, perdemos um tempo precioso em que poderíamos estar crescendo na profissão. Se tem verdade no seu trabalho, se você acredita nele, no seu conceito, na sua identidade, cópias são pouco demais para te tirar do sério. Acho que, mais que se perguntar se “existe cópia”, é melhor se perguntar se vale esquentar a cabeça sobre. Vale seu tempo e esforço?

Podemos apontar o dedo para muita coisa “por fora” sobre a valorização da confeitaria no Brasil. Falta reconhecimento, falta investimento do mercado, apoio nas faculdades de gastronomia, dentre outros problemas. Mas falta troca no nosso meio também, falta compartilhamento, falta interesse em crescer juntos, falta mais humildade, menos ego e competição. E acho que essa discussão acaba caindo bem nesse ponto. E você? O que acha a respeito?

(Foto de capa: Voa Andorinha)

Mariana Correa
Formada em Direito pela UFMG, e em gastronomia pela Estácio de Sá. Se especializou em confeitaria francesa na Le Cordon Bleu Paris, onde cursou o Le Grand Diplôme. Ganhou em 2014 em Paris o concurso ‘Design moi un éclair de génie’, promovido pelo Chef Christophe Adam, da pâtisserie’L’éclair de génie’. Em 2015, a pâtissière criou a marca La Parisserie, com o objetivo de trazer a verdadeira confeitaria francesa para BH.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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