Receita de Mineiridade: qual é a origem da culinária de Minas e por que o mineiro gosta de tanta fartura à mesa?

Por que o mineiro gosta tanto de fartura? Como alguns ingredientes foram incorporados à culinária de Minas Gerais? Por que as quitandas são tão tradicionais no estado? A pesquisadora Mônica Abdala se debruçou sobre essas questões para conhecer a origem dos hábitos e costumes gastronômicos das Minas Gerais.

Por que o mineiro gosta tanto de fartura? Como alguns ingredientes foram incorporados à culinária de Minas Gerais? Por que as quitandas são tão tradicionais no estado? A pesquisadora Mônica Abdala se debruçou sobre essas questões para conhecer a origem dos hábitos e costumes gastronômicos das Minas Gerais.

Por Isabel de Andrade*

Quando a professora Mônica Chaves Abdala me atendeu, estava preparando o café da manhã. No cardápio, havia pão artesanal e grãos de café especial de Araguari, no Triângulo Mineiro, que ela ia começar a moer, duas preciosidades da gastronomia. Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, USP, e professora da Universidade Federal de Uberlândia, UFU, ela sempre se sentiu atraída pela culinária. E foi essa a motivação para que ela se debruçasse sobre uma pesquisa que investigou como se deu a construção história da cozinha mineira. E foi com muita paixão e entusiasmo que ela me contou como se deu esse trabalho tão rico, que está reunido no livro Receita de Mineiridade, que teve a primeira edição publicada em 1997 e a segunda, em 2007.

Na pesquisa, que foi feita para a dissertação de mestrado no final da década de 1980, a professora queria compreender por que a cozinha é tão importante para o povo mineiro, que é conhecido pela sua hospitalidade e tem a sua identidade muito atrelada à comida. Segundo ela, esse vínculo se estabeleceu de tal forma que é reconhecido em todo o Brasil e até no exterior. A pergunta que originou a pesquisa de Mônica foi: por que a associação do mineiro é tão forte com a cozinha?

E em busca de respostas, Mônica Abdala recorreu ao passado. Voltou à história da colonização do território, principalmente no período do ciclo do ouro, e percebeu a importância da cultura da culinária de quintal. Naquele tempo, conta, o abastecimento era muito precário, assim como as estradas, por isso os alimentos demoravam a chegar a Minas. E quando chegavam já estavam deteriorados. O governo português proibia qualquer atividade em território mineiro que não fosse a extração do ouro ou diamante. Os engenhos de cana e de produção de farinhas também não eram permitidos e precisavam ficar escondidos nos quintais. A intensa urbanização caracterizava Minas Gerais nesse período da mineração. A vida era muito próxima às minas. Os senhores que tinham um número grande de escravos começaram a desenvolver o abastecimento interno porque havia crise de fome. “Havia ouro, mas não havia comida”, relata a professora.

Em busca da produção de alimentos, em especial no século XVIII, desenvolve-se a culinária que aproveita muito o conhecimento dos nativos e os portugueses foram fundamentais nessa globalização. Foram eles que trouxeram a couve, o porco, a galinha, o quiabo. Assim, foi sendo criada essa cultura que Mônica chama de quintais porque o alimento era cultivado nas casas dos senhores. Além da proibição da agricultura e da pecuária, o governo não via com bons olhos a entrada de gado porque havia o medo de escoar o ouro. Além do mais, era interesse da Coroa que todos os esforços estivessem concentrados na extração.

A pesquisadora relata que o milho, o porco, a galinha, a farinha e a mandioca eram muito explorados na nossa culinária no século XVIII. Ela diz também que, nos documentos pesquisados, não viu menção a nenhum tipo de quitanda nessa época. A explicação é clara. Havia uma situação de penúria. E como as quitandas levam muitos ovos e leite, não havia abundância de alimentos para que fossem preparadas. Mônica também não encontrou relatos da utilização do arroz que, junto com o bacalhau e os embutidos, estava presente apenas nas mesas dos mais ricos. A comida, portanto, acabou se tornando um símbolo de distinção social. Ter comida na mesa era sinal de status. Agora, explica a professora, o que tinha para comer era compartilhado por todo mundo. “A comida se torna um elemento central de se estabelecer relações e distinção social”, diz.

Como havia muita fartura de frutas nos quintais e de açúcar, pode ter surgido nessa época a cultura dos doces em compota. De acordo com Mônica, isso é relatado pelos viajantes que percorriam as Minas Gerais no século XVIII. Daí o hábito de se fazer compota com frutas verdes – figo, mamão, pêssego, limão, laranja. Isso é característico do tempo de penúria, diz Mônica. Como havia a fruta e o açúcar, não se permitia o desperdício. E como a preparação dessa iguaria é elaborada, leva tempo, era uma forma do português se mostrar civilizado.

O cenário começa a mudar quando houve um declínio das minas. Aí, a vida se volta para as fazendas e poucas pessoas permanecem nas cidades. Nas propriedades rurais, havia muita fartura e também isolamento. As pessoas desenvolveram um cuidado para sempre estar prevenidas para quando recebessem visitas inesperadas. Nesse momento entram em cena a carne de lata e as quitandas. “O cuidado de estar sempre abastecido tem a ver com o medo do período em que faltava comida e com as visitas que chegavam de surpresa e as pessoas queriam recebê-las com fartura”, esclarece Mônica.

As quitandas estão ligadas ao tempo em que a fartura começou a se fazer presente na cozinha do mineiro ( Foto: Pixabay)

A cordialidade, de acordo com a professora, tem muito a ver com a hospitalidade portuguesa. Quem é mineiro sabe bem o que isso significa. A gente faz sempre questão de receber as visitas com uma mesa farta. E a abundância foi a marca desse tempo. Havia muito leite, ovo, carne de boi. Aí, os mineiros começaram a produzir de maneira mais significativa as quitandas. Mônica lembra que uma rosca, por exemplo, leva cerca de 16 ovos. Os queijos também eram produzidos em abundância. As iguarias eram comercializadas, mas o que sobrava era aproveitado em receitas.

Pode ser essa, inclusive, a origem do pão de queijo. “Acredita-se que a receita tenha surgido na região do Triângulo, Alto Paranaíba e divisa com Goiás, porque foi onde se intensificou a pecuária com o declínio das minas”, explica Mônica.

A professora conta que havia uma presença mais forte do arroz e da carne de lata na mesa do mineiro. E o que veio do século XVIII permaneceu como, por exemplo, o angu, o frango, a couve, o feijão tropeiro e o quiabo. Toda essa riqueza vai passando de geração em geração e chega ao nosso século. “A culinária em Minas é diversa, mas alguns elementos que foram escolhidos para nos representar vêm do ciclo do ouro. Era a comida disponível, que representava todos”, explica.

Mesmo tendo que se adaptar à vida corrida dos tempos atuais, o que não muda é a associação entre o mineiro e a hospitalidade. Segundo a pesquisadora, a nossa tradição foi construída, foi uma elaboração política e intelectual. Ela vem da nossa origem, das minas, da nossa riqueza agropecuária. Numa sociedade tão fechada, você recebia em casa servindo alimento. Naquele tempo, toda a vida social das mulheres girava em torno de saraus e, consequentemente, do alimento. Era o momento em que elas mostravam todas as suas habilidades e as receitas de família eram verdadeiros tesouros e representavam uma espécie de dote. Era uma forma das mulheres se mostrarem prendadas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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Chefs e Mestres
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