Mineiridade em Desalinho – O Mineiro sem o Bar - Territórios Gastronômicos

Mineiridade em Desalinho – O Mineiro sem o Bar

Desfrutem desse belo texto, publicado no Blog Opsófagos ( Amigos da boa comida), que mostra com muita sensibilidade a realidade nesse momento de pandemia, com algumas reflexões e muito bom humor sobre a relação do mineiro e o bar.

Desfrutem desse belo texto, publicado no Blog Opsófagos ( Amigos da boa comida), que mostra com muita sensibilidade a realidade nesse momento de pandemia, com algumas reflexões e muito bom humor sobre a relação do mineiro e o bar.

Por: Blog Opsófagos*

Moby Dick, narrado em primeira pessoa pelo marinheiro Ishamel, conta a epopeia trágica da caça a uma baleia indomável. A obra ficcional revela a força da natureza e a fragilidade humana diante do inesperado, do desconhecido. Em tempos de pandemia, o mundo atravessa situação semelhante – no estilo, na forma e no conteúdo. As pessoas, com medo, buscam formas de se proteger, até que a ciência consiga neutralizar o que, na vida real, é um microscópico inimigo. No lugar dos arpões, a arma mais efetiva nesta batalha contemporânea tem sido o isolamento social.

Por conta disso, o mundo hoje está dividido entre os ansiosos seguros em casa e os inseguros ansiosos na rua. Os primeiros não vão à rua porque têm medo; os últimos não ficam em casa porque não podem. Ambos sofrem, ambos reclamam. Corações, mentes e bolsos entraram em colapso. Resumindo: tudo mais constante, por ora estamos todos absurdamente ferrados.

O instinto de sobrevivência, entretanto, fez com que os humanos buscassem alternativas para manter a sanidade física e mental. Para algumas pessoas, a tarefa tem sido mais fácil do que para outras. A internet tem ajudado nesta tarefa. Contudo, redes sociais não são – e nunca foram – espaços de socialização. As interações muitas vezes são inúteis e dispersas como as contas de um colar sem o fio que as conduza. Quando muito, nos mostram atalhos para aprofundarmos sobre determinado assunto do qual havíamos esquecido ou de que nunca tínhamos ouvido falar. O mundo digital nada mais é, portanto, que um simulacro da realidade.

Grupos sociais mais introspectivos tendem a sentir menos o distanciamento social. Já os expansivos andam cortando um doze para cumprir a regra sanitária que salva vidas. Os mineiros, por exemplo, andam cortando um treze. O mineiro e o bar mantêm historicamente uma relação simbiótica, uma dependência mútua, uma inter-relação obrigatória – Pierrot e Pierrette, Arlequim e Colombina, Abelardo e Heloísa, Pateta e Clarabela, pólen e gineceu, torresmo e cachaça. O pit-stop no bar – planejado ou não – faz parte do cotidiano mineiro. As variações ocorrem quase que tão-somente nos quesitos frequência, duração e consumo. Por isso, poucas coisas são mais doloridas do que ver os botecos fechados atualmente. Nos faz lembrar da sofrida crônica “Réquiem para os bares mortos” do mineiro botequeiro (com o perdão da redundância), Paulo Mendes Campos.

Em alguns (muitos) casos específicos, sobretudo para pessoas superlativas (como nós) tal rotina sempre foi muito intensa. A privação atual só não é pior do que morrer queimado ou de Covid-19. Tentamos o paliativo do tal “boteco em casa”. Só funcionou mesmo para dar uma merecida força aos estabelecimentos que estão tentando sobreviver. Outra solução grotesca, fruto do pensamento mágico de quem não elabora bem as ideias, é fazer live para beber online com os amigos. Quá!!! Esta não merece gastar nem as impressões digitais necessárias para comentar.

Uma coisa é certa: são tempos que estão nos proporcionando um aprendizado de humildade. Com sorte, pode haver mudanças no comportamento humano. Que tal começar por separar o que a gente quer do que a gente realmente precisa? Gastar com o que nos traz conforto e prazer e não com o que apenas proporciona status? Valorizar os bons momentos, tendo uma consciência maior em relação à efemeridade deles – e nossa?

Quando os contatos epidérmicos forem novamente permitidos, talvez passemos a sentir uma felicidade triste, qual seja aquela que se associa a um momento bom, como certeza da sua precariedade. Passaremos a ter consciência do não-ter na hora que se tem.

Tudo pode ser mudado. No entanto, ao ser mudado, muda também de natureza. Conseguiremos assentar no boteco com a mesma paz de alma anterior? Será que o ser-mineiro desenvolverá uma nova identidade na qual o boteco não ocupe a mesma centralidade antropológica? Possibilidades que ainda não estamos prontos para aceitar.

Por ora, com nossa mineiridade em desalinho – e sem poder fazer coro desafinado na roda de samba da velha guarda do nosso boteco preferido –, só nos resta invocar mestre Zeca Pagodinho:

“Agora

Uma enorme paixão me devora

Alegria partiu, foi embora

Não sei viver sem seu amor

Sozinho curto a minha dor”.

* OPS – OPSÓFAGOS ( Amigos da boa comida): {…} “Não somos jornalistas nem merecedores de distinção por nossas prendas culinárias. Somos uma advogada e um engenheiro ávidos pelo bem comer e pelo muito conhecer. Em razão disto, nos tornamos autodidatas e consumidores vorazes de literatura especializada e de experiências gastronômicas. Em hipersíntese, somos amigos da comida, verdadeiros comidólatras. Não temos outra expectativa para o blog além do prazer em compartilhar um pouco do pouco que sabemos, do que pensamos e do que investigamos. Para nós, ser amigo da comida é muito mais do que apreciá-la.”

@opsofagos.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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