Memória e história: o mineiro e o pão de queijo

Na coluna de Rafael Duarte, confira como a memória de um mineiro pode ser construída a partir dos laços afetivos com um quitute que faz parte da nossa identidade, o pão de queijo.

Na coluna de Rafael Duarte, confira como a memória de um mineiro pode ser construída a partir dos laços afetivos com um quitute que faz parte da nossa identidade, o pão de queijo.

A trajetória íntima de um mineiro do interior e da sua história com o pão de queijo

Por Rafael Duarte, estudioso das narrativas*

Acho engraçado como, às vezes, escuto um “uai” e sinto cheiro de pão de queijo. Parece que um elemento, por meio da memória, puxa o outro. Isso é algo impressionante. Na minha cabeça, eles andam mesmo coladinhos.

A memória, ao contrário do que muita gente acredita, não é um arquivo que pode ser revisitado como se retiram os livros em uma estante de acordo com o tema ou com o gênero, por exemplo. A memória é algo que se constrói em movimento, assim como se compõe uma narrativa, ou seja, não é à toa que, pra lembrar de algo, narramos um caso, na maioria das vezes. Então, sendo assim entendida a memória, vamos lá!

Na infância, eu me deliciava ao ver minha mãe e minha avó fazendo pães de queijo naqueles tachos grandes que ficavam na beira do fogão. Enquanto misturavam a massa com a mão e colocavam o forno pra aquecer, tricotando as fofocas do dia, o meu pai fazia o café forte e doce. Eu e meu irmão brincávamos de qualquer coisa sentados no chão da cozinha. A imagem que tenho é essa, com esses detalhes e com outros que remonto a cada contação, mas o cheiro – o cheiro que marca a minha identidade, esse se tornou inalterável ao longo do tempo.

Histórias…

É certo que o que se diz por aí sobre a história desse artefato gastronômico, em alguns momentos, entra em confronto. Eu, de verdade, ainda que me guie pelos trabalhos de pesquisa, nesse caso, não me importo com as distinções, apenas mastigo tudo direitinho pra não sofrer na digestão: o pão de queijo surgiu faz mais de 12 mil anos; o pão de queijo surgiu no séc. XVIII em Minas Gerais; o pão de queijo foi difundido em terras mineiras nos anos 1950. O pão de queijo pode ser feito com: queijo meia cura, com queijo Canastra, com farinha de mandioca, polvilho doce, azedo, óleo, banha e muita história, cada um com a sua. Os dados são importantes, o registro também, não há dúvida alguma disso, mas o meu caminho é pelo afeto, isso me encanta, me deixa maravilhado, me move.

Outra coisa que me deixa curioso são as possibilidades e os modos como esse quitute chega até à mesa. Várias são as formas de interação e, consequentemente, de laço, com essa iguaria mineira: conversando com outras pessoas, na praça, enquanto as crianças correm, pode acontecer a tradicional troca de receitas e, nesse exercício, não falta algum comentário sobre o pão de queijo; existem, também, aquelas receitas que firmam gerações e que consolidam uma família. É o caso daqueles casos que começam com “aprendi com minha mãe”, “aprendi com a minha avó”, “com o meu pai”, “meu tio”, “meus filhos”, resultando, sempre, em um punhado de gostosuras quentinhas com muita gente em volta. Se não tem história sobre as maneiras preparo, basta ir a uma lanchonete pra se deparar com um mundo feito de pão de queijo. Nesse território existe: pão de queijo de mandioquinha sem queijo; pão de queijo recheado, pão de queijo com manteiga, pão de queijo com requeijão, pão de queijo com queijo, feito com essência de queijo e também feito sem lactose; existe, ainda, o pão de queijo de liquidificador que depois é colocado pra assar em forminhas de empada. Tem pra todo gosto, né? Tem muito caso, né? Tem muita história bonita.

Inegavelmente, uma identidade gastronômica bem mineira

No meio disso tudo, desse emaranhado de narrativas sobre um pãozinho feito de queijo, o que não pode ser negado é que essa delícia faz parte da identidade de quase todo mineiro – eu queria dizer de todo, mas sei que nem sempre – e, mesmo assim, sei que todo mundo que passa pela cozinha – e que gosta de comida – tem algum palpite pra dar sobre ela.

Eu, mesmo que não saiba fazer o danado do pão de queijo, aprendi a comer de uma forma bem natural, com se essa comida fizesse parte de mim, assim como a interjeição típica de Minas me pega de jeito. Digo “uai” pra tudo: pra surpresa ou pro medo.

Do mesmo modo, entendo um pãozinho de queijo como uma extensão de mim, assim, o como como se seguisse um ritual: pego com uma mão, sinto se está quente ou morninho – prefiro quente – seguro com as duas mãos e parto ao meio. Logo na sequência surge aquela fotografia: o calor em forma de fumacinha mostrando a delícia que é essa mistura simples e sofisticada. Dou uma sopradinha, é claro, e pronto. Às bocadelas tudo se perde, ou melhor, se cria, melhor ainda, se transforma: uma vez com requeijão e outra vez com manteiga. Passo manteiga só pra sentir ela derreter com o calor e escorrer pelos dedos, escorregar pelas mãos, descer pelos braços e, em seguida, lamber tudo como se me fizesse um carinho.

Esse é um prazer que começa na ponta dos dedos, mas que não termina com o fim da fornada, pois, mesmo que essa história chegue ao meu estômago, a lembrança não permite que essa cena – e nem esse aroma – se perca em meio a um amontoado de causos. Basta, pra mim, escutar um “uai”.

Rafael Duarte é colaborador do Territórios Gastronômicos*

CONHEÇA DIFERENTES RECEITAS DO PÃO DE QUEIJO MINEIRO

Receita do Chef Rogério Duarte:

Receita da Roça:

Pão de Queijo com Baroa:

Pão de Queijo com Abóbora:

Pão de Queijo sem Escaldar:

Pão de Queijo da Confeiteira Vanusa Fagundes

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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