O cheiro e as sensações

A experiência da gastronomia vai muito além do paladar, engloba vários outros sentidos. E o cheiro é capaz de despertar sensações e reconstruir memórias que vão muito além da cena presente. Leia na coluna do professor Rafael Duarte.

A experiência da gastronomia vai muito além do paladar, engloba vários outros sentidos. E o cheiro é capaz de despertar sensações e reconstruir memórias que vão muito além da cena presente. Leia na coluna do professor Rafael Duarte.

*Rafael Duarte
Professor de Literatura
@rafaelduarte_silva

Toda terça, assim que termino minha análise, permaneço no escritório pra trabalhar um pouco, estudar, folhear uns livros e colocar as fantasias no lugar. Recorrentemente, sorte a minha, quando abro a porta desse lugar empanturrado de livros, sinto um rastro de cheiro da minha companheira saindo do banho. Tem ali, naquele aroma que invade a casa toda, um misto de banho quente, condicionador de cabelos e o sabonete da semana.

O cheiro, como imagino que muitos concordem comigo, tem um potencial de ativar a memória. Talvez um pouco mais que isso, ele tem a capacidade de estimular sensações. O que quero dizer é que, antes mesmo de pensar que o cheiro de um pavê lembra as brincadeiras sem graça do meu pai, penso que o aroma do limão é capaz de provocar uma sensação cítrica na minha boca, fazendo com que eu chupe a língua pra produzir saliva e engolir aquele perfume ácido.

Foto: Pixabay

Não sei se ficou claro o que eu quis dizer, mas vamos de outro exemplo: quando fecho os olhos, com a intenção de me concentrar em uma única atividade sensorial, parece que consigo potencializar sentidos distintos no meu corpo. É como escutar Vivaldi, de olhos fechados, no volume máximo, sem me atentar a nada do mundo real. Todas as imagens construídas pelas “Quatro estações” são única e exclusivamente desencadeadas pelo som. Existe um campo de estudos das narrativas sonoras que trabalha com “texturas sonoras”, isto é: quando um determinado som ou combinações sonoras é capaz de promover estímulos táteis. Tudo bem até aí, sigo na esperança de que a literatura contribua pra essa multiplicidade interpretativa que necessita da mobilização de recursos verossímeis e ficcionais. Mas e o cheiro? E a comida?

Quero revelar minha angústia – em certa medida produtiva – em questionar que a essência olfativa de algo só é capaz de exercitar a memória. Mais do que isso, eu acredito que ela seja capaz de produzir encenações e construir quadros representativos. Em uma das minhas últimas narrativas lamentei a minha falta de habilidade pra preparar um risoto. Por fim, recorrendo à ajuda dos amigos, comi um risoto de gorgonzola com uvas verdes, espetacular. O cheiro ácido da fruta e o defumado do queijo, antes mesmo de serem preparados, construíram, na minha cozinha, um quadro do Dalí, em que os pedaços de queijo mantinham sua consistência gelada, ainda que quentes, enquanto as uvas derretiam como “A persistência da memória”, obra desse pintor que foi capaz de figurar relógios derretendo, questionando, sem pudor algum, nossa capacidade memorialística.

Eu fico impressionado quando os amigos chefs sentem o aroma da erva e já logo pensam em uma sobremesa criativa; quando sentem o cheiro de um prato complexo e repensam o modo de preparo; quando se perdem no Mercado Central pra encontrarem o prazer no meio dos temperos. Sigo certo de que nós, sujeitos comuns, usamos o aroma pra resgatar uma cena, uma imagem ou um momento. Já os sujeitos sensíveis usam a essência como uma essência criativa pra uma cena, uma imagem ou um momento.

Quando saio do escritório e sinto o perfume do banho no corredor de casa, já logo imagino ela hidratando a pele, massageando as pernas, os braços, acariciando o corpo delicadamente, com os cabelos ainda molhados, esperando pela tensão dos dentes do pente. Imagino, também, a toalha jogada no chão, as costas ainda úmidas, enquanto escolhe uma roupa e se admira em frente ao espelho. A imagem é linda, ela também. Mesmo que eu chegue no quarto e a encontre deitada na cama mexendo no celular, a cena continua linda e ela também.

Rafael Duarte é colaborador de Territórios Gastronômicos

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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Jéssica Coura

Que delícia de texto ♥️