A gastronomia pelo olhar do poeta - Territórios Gastronômicos

A gastronomia pelo olhar do poeta

A poesia do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade foi a fonte de inspiração para o colunista Rafael Duarte fazer uma leitura particular da gastronomia e tudo o que envolve o ato de comer.

A poesia do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade foi a fonte de inspiração para o colunista Rafael Duarte fazer uma leitura particular da gastronomia e tudo o que envolve o ato de comer.

*Rafael Duarte
Professor de Literatura
@rafaelduarte_silva

Eu tenho um verso de Drummond tatuado no braço direito. Carrego a poesia e o olhar poético como uma espécie de movimento de vida. Como pulsão. Como desejo. O universo fictício soa, pra mim, sobretudo no tempo político em que vivemos, mais sensato que a realidade. A literatura entendida como fuga assumiu a responsabilidade de ser necessidade faz tempo. Apesar de não ser esse o “meu” trecho de Drummond, adoro a passagem do poema “Em face dos últimos acontecimentos”, que ele escreveu, em 1934:

Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos)

A pornografia drummondiana – muito distante da que se empilha nas plataformas de filmes do mesmo gênero –, é delicada. É um olhar sensível sobre o mundo. É um desnudar-se. É um despir da alma. É uma exposição erótica não só do corpo, mas também do tempo histórico e das emoções. Esse é um poeta genial, que manejava as palavras como quem sabe usar coentro na medida certa.

Foto: Pixabay

É motivado pela carga poética desse mineiro de Itabira que sigo observando os gestos que compõem os rituais em torno da comida. Ler Drummond me alimenta, me tira do lugar comum, me excita, me coloca em contextos inimagináveis e me sensibiliza. Nesse sentido, quero me despir dos pudores pra ver a cena gastronômica com olhos de poeta. Com olhar pornográfico. Posso dizer que, assim, coleciono um amontoado de imagens que estão na cozinha, na sala, giram em torno da mesa e da cama:

Lamber os lábios e os dedos depois de se satisfazer com um doce cremoso. Chupar a manga depois de arrancar a casca com os dentes. Comer com as mãos e mastigar as folhas da salada. Deixar que o molho escorra pelo queixo e pelo antebraço. Lamber, lamber, chupar. Querer. Pedir mais. Ter. Desejar um prato com o gosto na língua. Comprimir o céu da boca pra recolher o restinho de sabor. Pra intensificar o aroma. Pra revisitar o cheiro. Pra matar o tesão. Pra se satisfazer. Comer é um gozo.

Molhar o sachê do chá na xícara quente e observar a água ganhar cor. Girar o gelo, no fundo do copo, com a ponta dos dedos. Lamber o dedo. Chupar o gelo. Mastigar o gelo. Partir a maçã e observar seu desenho. Escolher as bananas. Deixar um pêssego explodir na boca. Colher os figos. Escolher os figos. Partir os figos. Admirar os figos. Comer os figos.

Foto: Pixabay

Meter a colher na boca e saborear. Passar o garfo nos dentes e se expor. Lamber a faca e correr o risco de se cortar. Lamber o prato. Lamber os dentes. Lamber a língua. Lamber a fruta. Lamber a uva. Morder os dentes. Apertar os lábios. Agarrar a mesa. Puxar a cadeira. Torcer o guardanapo. Sentir o tecido. Esfregar o tecido. Se limpar. Conversar. Escutar. Agradecer. Se levantar. Sorrir. Partir.

Diante de tanto “meme” que tenho visto por aí com o mesmo formato, com a mesma foto e com o mesmo tom, acho que não há problema algum em parodiá-los: Preliminar é pensar o prato, entender a receita e escolher o vinho. O resto é sexo.

Rafael Duarte é colaborador do Territórios Gastronômicos

Foto de capa: Pixabay

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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Jéssica Coura

??? impossível não querer ir pra esse lugar fictício.