Matança do Porco Caipira em Minas Gerais - Territórios Gastronômicos

Matança do Porco Caipira em Minas Gerais

Tradição nos quintais do interior de Minas Gerais, a matança do porco caipira ganha um relato forte e realista nesse belo texto da gastrologa e amante da cultura mineira, Izabel Gonçalves Nogueira. Ao final, clique na receita e aprenda a fazer o tradicional torresmo a pururuca. Confira!

Tradição nos quintais do interior de Minas Gerais, a matança do porco caipira ganha um relato forte e realista nesse belo texto da gastrologa e amante da cultura mineira, Izabel Gonçalves Nogueira. Ao final, clique na receita e aprenda a fazer o tradicional torresmo a pururuca. Confira!

Veja Também: Uma experiencia inusitada: porco caipira com coco macaúba

Matança do porco caipira em Minas Gerais

Por: Izabel Gonçalves Nogueira*

O mineiro planta o milho e

cria o porco. O porco come o milho e

o mineiro come o porco“.

Um dia esperado pelo povo que mora na roça durante todo o ano. Pois é dia de convidar os amigos, os parentes, a vizinhança toda, gente disposta a ajudar, nessa tarefa árdua de arrumar o porco que causa uma inexplicável sensação de bem estar e dever cumprido no fim do dia.

Compartilham-se alegrias, muita fartura, sabedorias e casos de seus avós, mantendo assim uma tradição. Falando poeticamente é dia de celebrar o fim da vida do porco, aquele porco caipira criado solto perto de casa ou no chiqueiro do fundo do quintal, tratado com milho, fubá molhado, soro do queijo e de sobra das verduras da horta. Aqui em Minas Gerais, mineiro diz sem nenhuma cerimônia – ¨Vai lá pra casa sábado, vamos matar um porco¨.

Na véspera é preciso amolar as facas, lavar as vasilhas, as latas, as bacias, cortar as folhas secas da bananeira, encher um balaio com palha de milho, prender os cachorros, apanhar limão, descascar o alho, separar o sal, torrar farinha de mandioca, catar lenha seca, passar barrela nas panelas. Uma trabalheira danada. É importante separar o machado e o punhal de matar porco que é um utensílio de aço, comprido, fino e bem afiado. Preferencialmente que seja dia de sol, pois a chuva não ajuda. E depois de tanto planejar ter certeza de que na hora ainda vai precisar de algo e é preciso garantir uma meninada bisbilhotando para poder demandar – O menino busca isso pra mim lá debaixo da pia da cozinha.

No dia combinado tem que acordar cedo, coar café e seguir para o chiqueiro ainda no escuro do amanhecer. Não deve ter muita gente nesse momento, pois o bicho estressa atoa e atrapalha o matador. A pessoa que mata o porco geralmente é um homem mais velho que carrega consigo o conhecimento e a prática acumulada ao longo de anos. É preciso dar uma punhalada certeira no coração abaixo da pata dianteira esquerda e o golpe deve ser rápido para que o sangue drene e evite o grunhido agudo do animal. Se o porco gritar o matador leva fama de ruim.

“Seu” Joaquim Elias, 77 anos, produtor rural de Baldim – MG, é matador de porco caipira desde os 15 anos

Consciente da morte do animal e já com o dia amanhecendo é preciso cobrir o porco com folha seca da bananeira ou palha de milho fazendo um grande fogo para que nesse processo conhecido como sapecar que consiste na queima leve da pele do animal por inteiro. Retirar as unhas dos pés e descartar. Assim inicia o primeiro passo da limpeza.

Usando uma escora para equilibrar o porco de barriga para cima. Inicia o corte abaixo do queixo em linha reta até a traseira. Descolar a língua e a garganta sendo o início da retirada das vísceras (barrigada). A retirada das vísceras é um procedimento cauteloso que deve ser feito com habilidade para evitar que a tripa, o suco biliar e o sistema urinário perfure e contamine a carne. Lembrando que órgãos genitais do macho (externo) e fêmea (interno) diferenciam no processo de execução. Após abertura do peitoral, escoa o sangue e reserva para a produção posterior do chouriço, imediatamente tem que espremer limão ou vinagre e não coagule o sangue. Continuando então retira a barrigada completa na parte de trás do porco. A execução dessa prática rústica feita por uma pessoa experiente tem duração de dez a quinze minutos.

A abertura completa do porco é feita com um machado e inicia na cabeça seguindo pela suã em direção ao rabo. O objetivo é dividir em duas partes iguais conhecidas como banda de porco. Comumente as pessoas que estão ali ajudando, arriscam acertar o peso de cada banda, palpitando o volume da carne e a quantidade de toucinho que vai dar no final. Antes da pesagem. Enquanto o povo tá nesse embate no terreiro a mulher recolhe o miolo da cabeça (cérebro) faz a farofa de miolo com cebola tropeirinha e farinha de moinho torrada, que é o acompanhamento perfeito com uma dose de cachaça.

A relação mercadológica do porco utilizada na roça é feita por troca, a meia, vendida para o armazém ou até mesmo emprestada. O porco é uma renda familiar que gera a subsistência e faz parte de um ciclo produtivo artesanal do homem do campo. Uma banda de porco remete à fartura e a segurança alimentar de uma família por um tempo nada se esperdiça tudo se aproveita.

Na barrigada separa os miúdos, a língua, garganta, bofe (pulmão), coração, fígado e rins, que são aferventados com água, sal e vinagre, utilizados em preparações diversas as mais comuns são fígado acebolado, sarapatel, farofa de miúdo. As tripas e o bucho são limpos com água corrente e fubá de um lado e do outro invertendo os lados virando a tripa com o auxílio de uma varinha verde limpando o muco interno da tripa. Para a tripa escorrer a água é preciso encher de ar com uma varinha oca da folha do mamão e pendurar próximo a fumaça do fogão. As tripas são utilizadas para fazer linguiça e as sobras são fritas na banha quente. O bucho deve ser lavado separadamente utilizando o mesmo método, porém é ferventado cozido, picado ou pode-se fazer uma buchada. As únicas partes que não são aproveitadas para consumo humano são os órgãos genitais, o sistema urinário e o suco gástrico que são separados e utilizados para fazer sabão.

Antes de destrinchar, a banda de porco precisa ficar dependurada escorrendo o sangue, em média umas duas horas para melhorar a qualidade da carne Posteriormente separa o osso da cabeça. Retira os pernis que são produtos diferentes, o dianteiro é uma carne mais dura, tem mais músculo e o traseiro é uma carne macia e volumosa. Separa a suã e a costelinha da camada de toucinho. Estende a suã numa superfície lisa ao contrário e cuidadosamente corta a lateral desossando a suã e separando o lombo, o mesmo é feito com as costelinhas.

Dona Ana Nogueira de Baldim – MG, no “destrincho” do porco

Depois deve-se descolar a camada do toucinho da pele ou deixar uma manta salgada para defumar no varal em cima do fogão de lenha. Uma parte do toucinho é frita na hora para retirar a banha do porco. Que vira óleo no preparo de todos os alimentos.

A pele, os pés, as orelhas, focinho e o rabo são os cortes indispensáveis numa típica feijoada. Numa matacão de porco eles são guardados limpos, com muito sal e juntos numa gamela de pau, para evitar a salmoura. Todas as apararas de carnes misturadas com pedaços de torresmo e toucinho viram linguiça.

No sertão de Minas Gerais a maneira mais tradicional de conservar a carne por mais tempo é na lata submersa de gordura juntamente com os torresmos 70%fritos. A preparação é feita um dia depois de matar o porco, pois a carne precisa ficar marinando durante 12 horas. O método é picar em pedaços consistentes e cozinhar as carnes, depois fritar até perder toda a água interna e imergir no volume grande de banha de porco quente. Esperar esfriar para tampar. O mesmo processo é feito com torresmo. As linguiças são feitas com as carnes das aparas fraldinha, toucinho de barriga, temperadas e inseridas nas tripas. Levadas também para defumar na fumaça do fogão. A costelinha e a linguiça depois de fritas podem ser armazenadas no método da lata de gordura. O torresmo e a linguiça na lata são ingredientes do tropeiro, prato típico de Minas Gerais.

Os cambitos (ossos do pernil) e a suã devem ser cozidos no mesmo dia da matação resultando num caldo espesso, suculento, colagenoso, um alimento forte e saudável. Caldo esse que, misturado com farinha de mandioca, cebolinha e salsa, bebe-se o resto da cachaça.

Tudo é dividido com quem ajuda na matança.

*Izabel Nogueira é gastrologa, mestranda em gestão de recursos hídricos na Agencia Nacional de Águas e colaboradora do Territórios Gastronômicos

RECEITA: Tradicional torresmo pururuca, um símbolo da culinária mineira

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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Marcio

Texto fascinante. Nostalgia pura. Obrigado por escrever!

Izabel Nogueira

Trás uma lembrança boa dos nossos quintais

Ana Paula Guilherme

Encantada pelo relato! Me senti transportada para a roça… Quanta sensibilidade Izabel!

Izabel Nogueira

Obrigada Ana … fico feliz que tenha gostado…

Francisco Starling

Izabel,
Achei maravilhosa a sua matéria!
Quando li, acredite que realmente consegui ver as cenas acontecendo, é assim mesmo que funciona!
Parabéns!

Izabel Nogueira

Obrigada Francisco. A ideia é descrever esse cotidiano tão real que não pode ser esquecido.

Kátia Rodrigues

AMEI A REPORTAGEM! ME VÍ NA FAZENDA, PARTICIPANDO DESTA TRADIÇÃO, COMENDO MIOLO DE PORCO FRITO NA PALHA SÊCA DO MILHO, ALMOÇANDO UMA COSTELNHA DE PORCO COM MANDIOCA!

Izabel Nogueira

Bom demais da conta.

Luiza Baggio

Bel ótimo texto! Muito legal conhecer o relato da matança de porco caipira! Sucesso na sua coluna!

Izabel Nogueira

Luiza fico feliz… elogios vindo de uma jornalista incrível como você me deixa lisonjeada … obrigada

maludinizalcantara@gmail.com

O texto me levou pra minha infância! Obrigada, Izabel!

Izabel Nogueira

Que bom que gostou querida

Janaina Gonçalves

Muito interessante a matéria. Não sabia como funcionava a matança de porco. ?????

Izabel Nogueira

Obrigada Janaina…

Nelita M. G.de Faris

Parabéns Isabel! Fiquei surpresa e orgulhosa de você. Senti muita saudade do seu avô e dos tempos de infância. Simplicidade, pureza e respeito! Cada ser cumprindo a sua missão e a do porco, alimentar os humanos . Sucesso em sua vida…

Izabel Nogueira

Obrigada madrinha

Luciana Aparecida Jory

Meu pai matava porco. Era sempre o dia mais triste da minha vida! );

LUCIO PEREIRA

Moro em BH e toda vez que vou para roça e tem uma matança destas é pura festa de muita simplicidade e fartura. Fui lendo e me vendo lá no meio daquela “bagunça” toda, eita que saudade.

dan google

a gente vai ali paga 30 cruzeiro no kg da linguiça, parece tão simples, não temos ideia de todas as pessoas, o tempo, e sentimentos que ecxistem no processo. Parabéns pelo texto, obrigado